Marisa Lajolo
Professor Antonio Candido faleceu em maio. Deixou muita saudade. E também muitas lições. Nelas, é frequente o tema da “função da literatura" : para que serve a literatura ? para que ela serve, na vida das pessoas e na vida social ?
Nas lições do mestre, aprendo que a literatura serve para construir um
sentido para o mundo. Aprendo que contos e romances, HQs, adivinhas,
telenovelas, ditados, poemas são formas que -ao longo da história- nós
todos, homens e mulheres, fomos inventando para procurar e oferecer
respostas a uma necessidade humana básica: compreender o sentido do
mundo
A literatura satisfaz nossa necessidade de sentirmos que
somos capazes de sobreviver. Mais do que isso: de viver e de apreciar a
vida.
Além das aulas, pilotadas pela figura elegante, bem
humorada e rigorosa do mestre, em dois de seus textos a questão da
função da literatura é detalhadamente discutida. "A literatura e a
formação do homem" e " O direito à literatura" .
Nestes dois
ensaios, em minha leitura, o professor examina a ideia de que nascemos
todos querendo viver, entender a vida. E que também nascemos sabendo
que, para viver, precisamos entender o mundo em que vivemos, precisamos
dos outros, de contato com a beleza, com a alegria, com a tristeza .
Mas ... também nascemos com medo de não conseguir satisfazer estas necessidades.
E uma função da literatura – entre outras tantas, mas talvez a
principal delas- é mostrar as quase infinitas maneiras de lidar com
estas necessidades e com estes medos. Com a literatura - reino maior da
fantasia e da imaginação - experimentamos maneiras de lidar com
medos, necessidades e alegrias .
Por isso a literatura é formadora. E por isso é um direito de todos.
Nas muitas dezenas de obras que comenta, o mestre discute diferentes
maneiras pelas quais a literatura cumpre essa função humanizadora. E
porque ela cumpre esta função, sua presença na escola é fundamental.
Conceber a literatura como fator de humanização talvez ajude a refletir
sobre o sentido de sua presença na escola.
Talvez a expressão “ensinar literatura” possa ter vários sentidos. E vários objetivos.
Um deles, é ensinar que Érico Veríssimo é gaúcho e Gregório de Matos
baiano; que Gonçalves Dias é romântico e Mário de Andrade modernista.
Trata-se de informações sobre autores e obras: cumprem o objetivo de
deixar o aluno / leitor mais informado. O que é correto e útil. Mas não é
tudo..
“Ensinar literatura” talvez ganhe um sentido mais rico –
nos dois lados da mesa do professor- quando tem por objetivo
desenvolver o gosto pela leitura. Ou tornar este gosto mais exigente;
mais exigente porque de leitores mais competentes. Neste caso, creio que
o verbo ensinar junta-se com o verbo inspirar .
Ensinar literatura, neste sentido, exige gostar de ler. Gostar muito. E ler muito . Como o professor Antonio Candido.
Quem gosta de ler, quem gosta de discutir o que leu, quem sabe ( e
gosta de ) discutir do que trata e o que pode significar aquilo que leu,
transmite este gosto aos outros. Por isso, a linguagem em que se fala
de literatura, em qualquer nível, precisa ser simples . Direta e
compreensível .
Há bem mais de um século, a literatura tornou-se
objeto de mercado. Se não a literatura, com certeza os livros dos quais o
texto literário é uma das matérias primas. E porque talvez esta
mercantilização seja irreversível, bibliotecas ganham espaço no
pensamento de Antonio Candido.
Na inauguração da biblioteca do MST,
ele celebrou a importância da iniciativa : As bibliotecas, os livros,
são uma grande necessidade de nossa vida humanizada. Portanto, parabéns
ao MST pela abertura desta biblioteca, porque o amor pelo livro nos
refina e nos liberta de muitas servidões
E esta ideia de uma
função libertária para a literatura não vale para as bibliotecas
escolares ? para salas de leitura, estantes de classe e similares
espaços , a partir dos quais professores iniciam seus alunos nas
práticas e prazeres da leitura ?
Se em “ A literatura e a formação
do homem “ e em “O direito à literatura “ mestre Antonio Candido
discute a função humanizadora da literatura, a importância que ele
atribuía à escola e às atividades voltadas para o ensino da literatura
materializa-se, em 1985 em outra obra , o pequenino “Na sala de aula” .
Seu subtítulo, “ Caderno de Análise Literária “ reforça sua destinação
e seu objetivo: “ sugerir ao professor e ao estudante maneiras
possíveis de trabalhar o texto. “ No livro, seis análises de poemas
brasileiros, do Brasil-colônia à segunda metade do século XX.
São
análises originalmente apresentadas em situações de aula onde, segundo o
Professor “ tudo ganha mais clareza, devido aos recursos do gesto e
da palavra falada, com o auxílio do fiel quadro-negro e seu giz de cor “
.
Ao compartilhar conosco – neste livro- algumas de suas aulas, o
Professor nos oferece, com a discreta generosidade que o caracterizava,
uma forma possível de exercer, compartilhar e expandir o direito à
literatura.
Projeto ao alcance de todos nós, em nossas salas de aula com nossos alunos.
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